segunda-feira, 19 de maio de 2008

Chineladinha de mãe: A articulação do uso da violência em um sistema de valores na educação de crianças

Postado por: Glaucia - CDI Matriz
Fonte: Gabriela Tunes, Elizabeth Tunes, Márcia Mamede

Uma das principais atividades da Pastoral da Criança é a preparação dos voluntários envolvidos no trabalho com as famílias - os líderes comunitários - pessoas das próprias comunidades que acompanham gestantes e, em geral, até 15 crianças de famílias vizinhas nas ações básicas de
saúde, educação e cidadania. No Guia do Líder (Pastoral da Criança – CNBB, 2003) são detalhadas as principais atribuições do líder comunitário.
O trabalho dos líderes comunitários e seu processo de capacitação vêm sendo continuamente avaliados e aprimorados durante a caminhada da Pastoral. O material básico da preparação dos líderes é o Guia do Líder que já está na sua terceira versão. Nas primeiras capacitações, quando do início da Pastoral da Criança, a Dra. Zilda Arns utilizava uma pequena apostila com os conteúdos dos cinco temas que abordava com os líderes: saúde da gestante, aleitamento materno, vigilância nutricional, re-hidratação oral e vacinação.
Essa apostila foi o embrião do primeiro Guia do Líder. Em 1987, com o reconhecimento da eficácia do trabalho, foi elaborada a primeira versão do Guia. A partir do final de 1998, iniciou-se um processo de atualização de informações sobre saúde do Guia do Líder e de mudança de conteúdo que permitisse uma melhor compreensão da criança, além de melhor adequar-se às visões de líderes e mães assistidas.
O novo Guia do Líder (Pastoral da Criança- CNBB, 2000), lançado em 2000, traz informações sobre saúde, nutrição, doenças, aprendizagem e desenvolvimento da criança, apresentadas sob a forma de ciclo vital que vai da gestação aos seis anos de idade, numa abordagem integral
do desenvolvimento infantil. Essa abordagem permite compreender como as condições do ambiente participam do desenvolvimento da criança. Nessa terceira versão, aprimora-se a apresentação do desenvolvimento psicológico como um processo cultural que caminha do social
para o individual, isto é, que o desenvolvimento da criança se dá, primeiro, na interação da criança com as outras pessoas – a criança precisa de ajuda para aprender (plano inter-subjetivo) – e, depois, no plano intra-subjetivo, como uma ação auto-regulada e autônoma. Foram construídos indicadores que permitem articular o atendimento às necessidades da criança ao contexto em que vive, denominados indicadores de oportunidades e conquistas. Esses indicadores deixaram de ser focados na criança para se aterem à sua situação de desenvolvimento. O líder é orientado a fazer um diagnóstico da situação de vida da criança e da família e, com base nele, procurar, sempre junto com a família, o que pode ser feito para manter um ambiente favorável ao desenvolvimento da criança ou para melhorar, quando a situação evidenciada apresentar risco. Vale ressaltar, contudo, que a adoção desses indicadores têm como principal objetivo promover, entre as líderes e as famílias, oportunidades para o estabelecimento de conversar, de fazer análises e discussões ligadas à educação, à aprendizagem e ao desenvolvimento da criança e sobre o suporte que a família precisa encontrar na sua comunidade para proteger, cuidar e educar suas crianças.
Com a implantação dessa nova versão do Guia do Líder e, dando continuidade ao seu empenho em avaliar continuamente suas ações, a Pastoral da Criança decidiu realizar uma pesquisa com o objetivo de obter informações para subsidiar ações futuras para a capacitação de líderes comunitários e coordenadores da Pastoral da Criança por meio do conhecimento do impacto que ações desta Instituição têm sobre a compreensão de seus agentes e de sua população alvo a respeito da educação da criança na família e de seu desenvolvimento.
Assim, o objetivo inicial da pesquisa não estava referido à análise de práticas violentas na educação dos filhos. Todavia, chamou a atenção nos relatos a freqüência de menções ao uso de práticas violentas como ferramentas na educação dos filhos.
Os relatos permitem entender o modo como a violência é utilizada e as razões desse uso. Evidenciam, também, uma importante diferenciação entre a violência doméstica e a violência do crime organizado, que se mostra muito clara tanto para mães quanto para líderes da Pastoral da Criança.
O trabalho foi realizado em grupos separados de mães assistidas pela Pastoral da Criança e de líderes comunitários, em algumas comunidades do Distrito Federal e da cidade do Rio de Janeiro. Selecionamos para este relato o caso das mães e líderes de Acari por apresentar, com clareza, o
sentido que tem para elas o uso de práticas tidas como violentas na educação de seus filhos.

O caso de Acari
As famílias de Acari assistidas pela Pastoral da Criança moram em casas de alvenaria sem revestimento ou em barracos de madeira; estes, principalmente, na comunidade que fica às margens do Rio Acari. De um modo geral, este bairro da cidade do Rio de Janeiro é todo plano. As casas e os barracos possuem de um a dois cômodos apenas, ficando o sanitário do lado de fora. Há saneamento básico para a maioria das casas de alvenaria, mas ele é inexistente nas ruelas onde se situam os barracos. Há energia elétrica nas casas; os barracos são alimentados pelo que se costuma chamar de “gato” (uma ligação que puxa, clandestinamente, energia de uma outra casa).
Os moradores do bairro têm acesso a serviços públicos de saúde (posto e hospital), creches e pré-escolas, que se localizam perto, além de algumas creches de cunho assistencial. O bairro é servido por linha de ônibus e metrô. É também considerado um dos mais violentos do Rio de Janeiro.
Em Acari, foram realizados quatro encontros com um grupo de líderes e quatro com um grupo de mães assistidas por essas líderes. As discussões nos grupos eram coordenadas e incentivadas por uma pessoa da Pastoral da Criança, uma das responsáveis pela condução dos trabalhos de capacitação dos líderes comunitários.
Os grupos pertenciam às paróquias de Santos Mártires Ugandenses e de Nossa Senhora de Nazaré, das seguintes comunidades: Casa da Pastoral da Criança e Nossa Senhora dos Navegantes; Senhor do Bonfim e Maria Mãe da Igreja. Nessas três comunidades pesquisadas, à época da pesquisa, havia um total de 17 líderes e 11 pessoas de apoio, perfazendo uma média de 10 a 12 crianças assistidas por líder/apoio e 28 a 30, por coordenadora comunitária. Um total entre 220 a 250 famílias era assistido por essas pessoas.
Assim como as mães, eram de nível sócioeconômico baixo e moravam no mesmo local que as famílias assistidas. Todavia, não havia líderes que moravam às margens do Rio Acari, o local mais pobre. Em média, tinham dois a três filhos, com exceção de uma, com sete filhos. Três líderes encontravam-se na faixa etária de 50 a 65 anos e cinco entre 30 e 40 anos.
As nove mães que participaram das reuniões eram todas donas de casa. Havia no grupo uma avó, com sessenta anos, que cuidava de dois netos; duas mães com idade aproximada de 40 anos, uma com 4 e outra com 5 filhos. As demais mães eram jovens com idade entre 16 e 20 anos e a grande maioria morava com um companheiro.

Violência e sistema de valores
Um aspecto que chama a atenção na identificação dos valores que orientam ações e posturas nas famílias assistidas refere-se ao uso da violência doméstica como instrumento para educar as crianças.
É comum o hábito de bater nas crianças como forma de forçá-las a exibir comportamentos desejados pelas mães. Não houve tentativas, por parte das mães, de esconder o fato de que fazem isso, o que indica que não consideram o ato de bater algo condenável ou digno de vergonha. O relato das mães permite afirmar que bater é algo moralmente aceito no contexto do
cotidiano doméstico dessas famílias. As mães de Acari, contudo, reproduzem o discurso técnico-científico, que lhes chega por diversos meios (televisão, opinião de especialistas como médicos e pediatras, livros, revistas, escola, entre outros), que versa que não se pode bater nas crianças.
Apesar disso, não incorporam esse discurso em suas práticas. Assim, ao longo das discussões, ao tentarem unir suas histórias com o discurso difundido pelos especialistas, acabam por entrar em
contradição.

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